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Foto do escritorMariléia Sell

A última tentação de Pipas

O escândalo chocaria toda a cidade; não era bem uma cidade, era mais um povoado. Desses lugares pequenos, em que todos sabem da vida alheia melhor do que da própria.  Porque, convenhamos, a vida não se esforça para ser chata em alguns cantos do mundo. Ninguém disfarça a satisfação  de ter alguma novidade para compartilhar. Se for uma desgraça, melhor ainda! Foi assim com Dona Pipas. Ela viraria notícia; cairia na boca do povo. Nessa boca grande e faminta que mastiga, com indisfarçável deleite, a honra alheia. Em um primeiro momento, ninguém conseguiu acreditar no que estava ouvindo. Dona Pipas? Essa informação fora mesmo checada? Até os mais crédulos encheram-se de escrúpulos antes de se lançarem ao gozo da difamação. Sim, fora. E também testemunhada. Pelo marido. O corno.


Como assim? Queriam todos saber. O que dera em Pipas a essa altura da vida? Uma senhora! A reputação de Pipas era algo a ser invejado por todas as mulheres, especialmente por essas jovenzinhas que não aguentam mais um casamento, que por qualquer coisinha abandonam o sacramento. Dona Pipas, não era dessas. Criara seis filhos praticamente sozinha, porque o marido, um próspero fazendeiro, viajava bastante. Comercializava gado e, no caminho, amava muitas mulheres. Pipas não se abalava, era devotada à família, ninguém poderia lhe atirar palavras. O marido não era dos mais amorosos, as vezes era até meio bruto, mas não batia. Exceto por algumas poucas vezes. Poucas, é justo que se diga. Mas nada que excedesse o normal. Qual é o homem que não perde a cabeça quando chega em casa e a janta não está na mesa? Aborrecimento mais do que compreensível. Pipas não podia se queixar de falta de dinheiro e isso era um luxo para poucas naquele fim de mundo. A mãe de Pipas, prática que era, arranjara tudo. Um dia Pipas entenderia que ninguém vive de amor. Um dia esqueceria a sua paixonite de adolescência. “Um dia ela ainda vai me agradecer”, pensava a mãe, do alto de sua experiência de viver  sem amor e sem dinheiro. Com muito amor e nenhum dinheiro, o amor de Pipas foi ganhar o mundo. Foi ser artista de circo.

Fazia muito que Pipas perdera qualquer vaidade. Perdera também a noção de que tinha um corpo. Mas, como as ventanias não pedem passagem, Pipas seria arrancada de sua imobilidade atávica. O caos a olharia bem na bola do olho e a arrastaria para o abismo. E aconteceu assim, num dia dos mais ordinários, desses que não geram absolutamente nenhuma expectativa. Foi voltando da quitanda que Pipas reencontrou o seu amor da adolescência. Batatas e cebolas saíram rolando. O  mundo desensarilhou dos trilhos por alguns instantes. Quando voltou ao seu eixo, ambos perceberam que tudo era como antes. O mesmo calor no corpo. A mesma convulsão interna. Quarenta anos não apagam promessas nunca vividas. Promessas nunca vividas ficam eternizadas pelo desejo, perceberam eles. E Pipas quis, finalmente, viver as promessas. Não tinha outros 40 anos para esperar. Ainda era tempo de aprender tudo sobre o amor. E aprenderia muito mais. Descobriria-se insaciável. Despertaria do seu sono existencial.

É universalmente sabido que o amor é cego e, cega de amor, Pipas foi pega.   Em flagrante, exausta, descabelada e feliz! O marido bem que quis lavar a sua honra, mas não encontrou forças. Andava meio doente. Mas não era homem de deixar quieto; cuidou pessoalmente de espalhar para todo mundo que a sua mulher era uma puta. Uma puta dissimulada. Quem poderia imaginar? Com essa cara de santa? Ninguém conhece realmente o poder de dissimulação de uma mulher. Pipas era a ilustração viva dessa sabedoria milenar que os homens carregam.

Com a reputação na lama, Pipas planejou a fuga. Viveria só de amor e de estrada dali pra frente. Sairia sem olhar pra trás. O seu amor a esperava no trem e não havia nada mais excitante na vida do que um amor esperando no trem. Assim, tomada de planos, olhos perdidos no infinito, Pipas não colocou as roupas na mala aberta sobre a cama. Foi-se ficando. Tornara-se a melhor enfermeira que um marido pode querer.

O corno e a puta ficariam para sempre ligados. O ressentimento tem dessas coisas.


 

Conto publicado originalmente no jornal Visão do Vale em 07 de junho, 2018 às 08:54

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