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  • Foto do escritorMariléia Sell

A escolhida

Os dias corriam tranquilos para Marinalva. Tinha tudo o que uma jovem galinha podia desejar nessa vida: campos vastos para ciscar com as amigas durante o dia, um galinheiro à prova de raposas para repousar à noite e potes fartos de milho a qualquer tempo. Gostava de perder-se em territórios infindáveis para explorar tudo o que o chão podia oferecer. Como galinha que era, vagamente ciente da sua própria natureza simplória, compreendia ser guiada por instintos muito elementares; não tinha qualquer pretensão mais elevada e raramente divagava sobre algo que não cacarejar, ou ciscar, ou se comera mais do que o seu papo suportaria. Tudo era como era, não havia necessidade de questionamentos, apesar de, às vezes, seus olhos estalados darem a sensação de algum espanto. Sabiam também, e esse era o tipo de conhecimento avalizado pela experiência prática de todas as galinhas de todos os tempos, que os verdadeiros tesouros estavam sob os seus pés, então, pra que cansar o pescoço à toa procurando as coisas elevadas? Ao invés de perderem-se em abstrações, focavam-se em minhocas e insetos desprevenidos.


Fonte: Adaptação de Daniel Cunha

Marinalva ingressava na vida adulta despertando expectativas. Dona Rita reconhecia de longe o potencial da galinha: seria uma mãe extraordinária; era grande, cheia de penas e cheia de promessas; daria conta de um ninho com muitos ovos. Envaidecida, Marinalva aceitou seu papel. Entre todas, fora a escolhida.

Três dias passou sentada sobre o ninho com 20 ovos. Mantinha-os quentinhos e protegidos e achava o sacrifício razoável, não saía nem para comer. Do ninho, esticava o pescoço para o pote com milho e sublimava a vontade de ciscar com as amigas. Afinal, o que era a liberdade ante as promessas da maternidade? Pertenceria ao seleto clube de galinhas autorizadas a falar sobre filhos, sobre responsabilidades, sobre coisas mais elevadas, coisas que jamais estariam ao alcance da compreensão daquelas que não eram mães, daquelas cuja única preocupação era ciscar.

Três dias estava sem ciscar nadinha. Pelas frestas do galinheiro mal juntado por tábuas irregulares, via as amigas explorando fronteiras desconhecidas, as amigas que não seriam mães, que não compreenderiam a missão maior da maternidade. Até sentia uma pontinha de pena delas. Mas quem tem pena é galinha, pensou, divertida, nos raros momentos em que galinhas pensam. No quarto dia, Marinalva resolveu sair para dar uma ciscadinha de nada. Afinal, era permitido sair por alguns minutos, todas as mães sabiam disso, desde que voltasse logo, desde que não esquecesse das obrigações da maternidade. Poder sentir a alegria de explorar o chão cheio de surpresas e colocar em dia os assuntos com as amigas descompromissadas fez com que se sentisse renovada. Na quarta noite, teve sonhos de exploradora de terras virgens, o que a fez despertar melancólica no quinto dia. Se lhe perguntassem, não saberia explicar o seu estado de espírito, não saberia explicar que tivera um sonho; não se tinha notícias, até então, sobre galinhas sonhando.

Naquele dia, no quinto, perdeu a hora de voltar ao ninho. Assustada, corria através do quintal, o interminável quintal e seus recantos úmidos, tentações muito perigosas para uma galinha com tamanhas obrigações como eram as suas. Vinte ovos! Poucas galinhas na redondeza seriam capazes de cobrir tal quantidade ao mesmo tempo. Corria com todo o vigor de que suas pernas longas eram capazes. Na urgência de redenção, espalhava penas. É certo que não havia uma regra fixa que estipulasse horários, apesar de sempre haver aquelas que levavam as obrigações ao extremo: não saíam nem para comer. Marinalva achava isso um exagero descabido, um certo esnobismo até; uma necessidade de afirmação.

Do sexto dia em diante, Marinalva se desligou do relógio, por assim dizer. Esticava a sua estada nos campos e sequer voltava correndo. Para ela, correr era mais difícil do que lidar com a reprovação das colegas. Ao seu modo, conciliava os dois mundos: atendia ao chamado da maternidade, parcial, é verdade, e seguia o seu instinto de explorar mundos. Gostava do sentimento de virtude que a maternidade trazia; distinguia-a das demais, mas gostava também do mundo para além das paredes do galinheiro. Cada vez mais tarde, voltava ao ninho, sob os olhares de censura de Dona Rita, que, inconformada, contabilizava os ovos perdidos.

Na sua compreensão limitada de galinha, Marinalva, aos poucos, declinava da maternidade, não estava preparada para a graça de ser escolhida. De todo modo, perdera a conta dos dias. Vinte e um dias, era o tempo necessário para fazer brotar a vida nos ovos. Não sabia ao certo quantos deles havia negligenciado. Subiu ao poleiro, tal uma galinha expulsa do paraíso. A ninhada estava arruinada.


 

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1 Comment


Jádina Brummelhaus
Jádina Brummelhaus
Nov 01, 2019

Excelente! Maravilhosa metáfora para representar a vivência de muitas mulheres que carregam o peso da maternidade que a nossa sociedade machista impõe. Meninas e mulheres são perseguidas pela necessidade de reproduzirem e darem à luz, o sofrimento que acompanha a maternidade não pode ser desconsiderado como se pouco afetasse a vida destas mulheres, ser mãe é um dom que precisa ser desejado.

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