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  • Foto do escritorMariléia Sell

A loteria

Osvaldo era homem de fé. Mas não era desses de aguardar o milagre cair no colo. Fazia a sua parte. Apostava na loteria com a mesma regularidade com que batia o ponto na oficina de veículos pesados do Seu Ademir. Na missa dominical, rezava para todos os santos, já que não conseguia se decidir por algum em particular. Em se tratando de santos, acreditava na competência de todos, então não fazia diferença, racionalizava.


Até que um dia, em forma de bilhete, o verbo se fez carne. Seu estômago se contraiu violentamente. Será que havia, finalmente, acontecido? Ajustou os óculos para conferir, de novo, os números. Era bom ter certeza. Seria vexatório sair espalhando uma notícia dessas e depois constatar que era engano. Mas estava tudo certo. Eram os números. Ganhara dez milhões.

Aturdido, invade o quarto do filho e anuncia a chegada de novos tempos; a faculdade poderia ser retomada. Construiria uma casa maior, de dois pisos, e com rebocos. Teria uma televisão grande e contrataria muitos canais. Dirigiria um carro de quatro portas, com ar condicionado. E pararia de trabalhar. Osvaldo entrega o bilhete para o filho examinar. Achava prudente um segundo olhar. Sonolento e incrédulo, o filho percorre os olhos pelo bilhete e anuncia que são quatro ganhadores. Rápido em cálculos e com o coração aos pinotes, Osvaldo, agora quatro vezes mais pobre do que há um segundo, se conforma com dois milhões e meio. Ainda era mais dinheiro do que poderia ganhar em várias vidas de trabalho. Daria, ainda assim, para consertar a vida, consolou-se. Aplicaria uma soma maior para poder viver de rendimentos e diminuiria o tamanho da casa. Era só uma questão de planejamento. Gostava dessa palavra. Dava um certo verniz de refinamento para a tarefa de administrar a pobreza de todos os dias. Era mais do que semântica, era sobrevivência.

O alvoroço terminou acordando o segundo filho, visivelmente azedo com a movimentação inesperada em seu precioso horário de descanso. Com as bochechas em chamas e com um sorriso que fazia saltar a gengiva rosada e lustrosa da dentadura, o pai anuncia que não precisaria mais trabalhar à noite, o segundo filho, muito menos fritar hambúrgueres na lanchonete de Dona Inês, uma velha de dificílimo trato. Antes de analisar o pedaço de papel entre os dedos grossos e pretos de graxa de Osvaldo, o filho ajeita a enorme nuvem de cabelos engordurados. A essas alturas, o pai não esconde mais a sua emoção e trava batalha perdida contra as lágrimas. Tudo mudaria a partir de agora. Tudo valera a pena, afinal: as rezas, as apostas, a fé inabalável. Não poderia esquecer de fazer uma doação à igreja. Teria que ser algo na casa do milhar, pensou. Tinha um apurado senso de justiça; a oferenda teria que ser proporcional à graça alcançada. Não faria economia com os santos, isso jamais.

Mas na ciranda da vida, o que opera mesmo é a lógica do susto, da resistência cardíaca. De repente, o mundo se sacode sobre o seu eixo e as coisas voltam para o início. Um outro início. Um início contaminado com a euforia de véspera. Que não se concretiza. O segundo filho, com os cabelos finalmente acomodados atrás das orelhas e mais desperto do que parecia, a uma primeira vista, declara, com um certo ar de superioridade, mas também de ressentimento, porque agradava-lhe a ideia de dar as costas à dona Inês, que o bilhete premiado não era o da aposta. Tratava-se do resultado. A mãe trouxera o papel da lotérica, na volta da padaria, e o deixara sobre a pia para conferências. Osvaldo era, agora, pobre na íntegra, como sempre fora, com o agravante de estar atrasado para o trabalho.

 

Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 17/07/2019.

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