Mariléia Sell
A paixão de Diones
O coelho da Páscoa anda perdendo a credibilidade aqui em casa. Valentina está com terríveis desconfianças. Com seus grandes olhos inquisidores, pergunta se ele de fato existe. Sua desconfiança tem bases: ela viu uma considerável quantidade de chocolates na sala da diretora e com essas evidências empíricas concluiu que as professoras estão mancomunadas com o coelho. Enquanto tento restaurar a honra do coelho, lembro de uma história de quando era professora em uma vila bem pobre. Tão à margem era essa vila, tão distante do reino mágico, que o coelho se perdia no caminho. Papai Noel enfrentava os mesmos problemas, lembro bem!

Arte: Daniel Cunha
As professoras, pouco inclinadas à resignação, dão um jeito, elas sempre dão um jeito; se há uma coisa em que somos especialistas é em dar jeito. Se houvesse alguma justiça nesse mundo seríamos oficialmente nomeadas ajudantes do coelho (e também do papai Noel). Damos nosso jeito de não negar mais uma vez o direito a um pouco de magia na vida das crianças; embalamos doces para que elas não ingressem ainda mais cedo na vida adulta. Escondemos ninhos como uma ode ao direito à infância.
Não há uma Páscoa, desde 1993, que eu não me lembre de Diones. Eu era uma jovem professora (continuo sendo, professora, quero dizer), cheia de sonhos de mudar o mundo. Diones, meu aluno, era muito pobre, tinha um pai alcoólatra que batia muito nele e também na mãe. Um dia, quando veio cheio de hematomas pelo corpo, mandei um bilhete chamando a mãe. Envergonhado, disse que a mãe não sabia ler. Fui até a casa dele: o que vi não gostaria de ter visto. A estética da pobreza é feia. A avareza da vida estava expressa em cada rosto da família de Diones. A pobreza enfeia as pessoas! Não há comida de qualidade, não há produtos de higiene que cuidem das peles, dos cabelos e dos dentes. Não há assistência médica. Seus corpos são uma cartografia, uma denúncia social, um atestado vivo do fracasso do estado.
Era semana santa, que de santa não tinha nada na vida de Diones, tão cheio de hematomas que estava, tão magrinho que era. A conversa com o pai não foi muito amistosa. A diretora da escola encaminharia a situação e eu voltei minha atenção aos ninhos dos meus alunos. Na quinta feira antes da Páscoa, escondíamos os ninhos no gramado da escola. Lembro de Diones, com sua pele machucada, suas pernas longas e desengonçadas, pernas de adolescente, investindo a energia de uma vida toda nessa caçada. Ele sorria, mesmo machucado e mesmo não acreditando mais em coelhos da páscoa. Ele tinha 13 anos. Tinha treze anos e estava na segunda série. Quantas vezes é possível a vida falhar para uma criança? Quantos fracassos pode uma criança acumular? Se eu viver cem anos (e não gostaria!) ainda lembrarei da alegria de Diones quando ele encontrou o seu ninho. Ali ele era uma criança como qualquer outra. Como qualquer criança que precisa do simbolismo da magia para elaborar o mundo, especialmente um mundo tão econômico em alegrias.
Sexta feira da paixão é feriado, não tem aula. É o dia em que Cristo morre na cruz para salvar a todos nós, pecadores. Seria também o dia da paixão de Diones. Por essas ironias da vida, Diones morre naquela sexta-feira, com um tiro nas costas, montado na garupa de uma moto. Ele havia sido convidado por um vizinho para realizar um assalto. A recompensa seria um tênis, um daqueles que os meninos desejam tanto, especialmente os meninos da vila, a quem essas coisas são negadas.
Aquela Páscoa viraria símbolo para mim. A crucificação de Diones pela sociedade aconteceu junto com o calvário de Cristo. A sociedade é a mesma, embora os tempos sejam outros. Ambos, Cristo e Diones, redimem a humanidade de todo o mal, de toda a injustiça, de toda a feiura. Como o povo judeu, Diones fez a sua travessia. Ele libertou-se do cativeiro da pobreza e da violência. Ele ressuscitou com Jesus no domingo da páscoa e agora corre nos campos eternos atrás do ninho de ovos de chocolate que uma professora escondeu.