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  • Foto do escritorMariléia Sell

A realidade é uma disputa de narrativas: 'não houve ditadura no Brasil'

O presidente de 57.797.456 brasileiros e brasileiras, Jair Bolsonaro, tem declarado que no Brasil não houve ditadura. Para ele, não houve um golpe de estado, e a derrubada de João Goulart foi um  ‘movimento’ necessário para salvar a nação brasileira do nefasto avanço de forças comunistas que se alastravam por  toda a América Latina. Não houve, durante os 21 anos de governos militares, violações aos direitos humanos. Quem foi preso, torturado e morto, quem desapareceu sem deixar rastros, era vagabundo e terrorista e merecia conhecer o braço reparador do estado. Ainda, segundo Bolsonaro, o erro deste período histórico foi não ter matado mais comunistas. A dita foi branda!


Arte: Daniel Cunha

O ministro da educação do Brasil, Ricardo Véles Rodríguez, afirmou que mudanças ‘progressivas’ serão feitas nos livros didáticos, de forma a resgatar uma versão ‘mais ampla’  da história sobre o período militar. Ou seja, a história será recontada para que os/as estudantes brasileiros aprendam a versão oficial dos fatos; a versão do governo Bolsonaro. Novas narrativas disputarão aquilo que já está amplamente documentado por historiadores/as, por vítimas, familiares e testemunhas do período de 1964 a 1985. As grandes distopias da literatura exploram amplamente o fenômeno de reescrever o passado. George Orwell, em sua obra 1984, descreve a instalação do Ministério da Verdade, aquele que decide o que é verdade e o que não é. A incumbência deste Ministério é a de reescrever constantemente a história, de modo a construir, discursivamente, o consenso e apagar qualquer discurso que vá contra a ideologia do grande irmão. O mesmo autor, em A Revolução dos Bichos, fala da alteração dos sete mandamentos do Animalismo. As reescritas acabam por retirar todos os direitos dos animais que fizeram a revolução contra os humanos na fazenda e chegam a um único mandamento que serve para  justificar o poder de Napoleão, o porco golpista: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.

Na vida como na arte, a realidade é uma disputa de narrativas. Quem tem o direito de contar a verdade? Quem pode escrever  a história oficial de uma nação? A fabulosa escritora nigeriana Chimamanda Adichie, em seu mundialmente famoso TED “O perigo da história única”, alerta para os prejuízos das narrativas unilaterais e totalitaristas. Ela adverte que aquilo que se diz repetidas vezes sobre um povo acaba por ser a verdade daquele povo. Ou seja, as narrativas têm o poder de construir a realidade, porque, conforme Foucault, em A Ordem do Discurso, a realidade só existe no discurso. Nada existe fora do discurso. Cada coisa só existe porque foi nomeada. É a gênese bíblica: “e o verbo se fez carne”. Por isso mesmo, pela sua importância,  é que elas, as narrativas, são  disputadas a foice. Para ilustrar, basta que imaginemos o desafio proposto por Chimamanda: se os índios tivessem tido o poder de narrar a história da colonização, como seria? Jamais saberemos ao certo. Um provérbio africano traduz essa unilateralidade das versões com a narrativa dos caçadores: nunca o leão sai vencedor porque ele não vai contar a história. Por isso mesmo, Adichie insiste que precisamos ter acesso a múltiplas narrativas. As múltiplas versões promovem o que ela chama, inspirada em Chinua Achebe, ‘o equilíbrio das narrativas’. De acordo com o escritor Rudyard Kipling, somente quando nos reconhecemos nessas narrativas múltiplas é que reconquistamos uma espécie de paraíso. Isso porque também nós só ganhamos o estatuto da existência quando somos reconhecidos pelas narrativas dos outros, quando o outro nos nomeia: o grande Outro, de Sigmund Freud. Paradoxalmente, então, só existimos pela palavra, pela palavra do/a outro/a.

Na disputa de versões que vivemos no Brasil, é importante insistir nas narrativas de resistência. São elas que, ao fim e ao cabo, nos permitirão algum espaço de existência. No Brasil, houve ditadura civil militar, pelo menos 434 pessoas foram assassinadas ou desapareceram, conforme relatório da Comissão da Verdade, e milhares de pessoas foram torturadas ou sofreram exílio. Houve o cerceamento da liberdade de expressão e o monitoramento das ideias de quem quer que fosse contra o regime. Qualquer narrativa que diga o contrário, precisa ser confrontada, tensionada, sob pena de deixarmos de nos reconhecer na história nacional. Sob pena de criarmos uma visão confusa e amorfa sobre quem somos, como os animais da fazenda de Orwel, que já não sabiam distinguir entre os humanos e os porcos, que já não lembravam mais da história, da sua própria história. Sob pena de deixarmos de existir.


 

Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 07/04/2019.

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