Deitado na cama, imóvel, ele prega os olhos de um azul profundo nas paredes estéreis do quarto de hospital. “Está tudo cheio de formigas”, agita-se. A esposa o acalma e garante que tomará providências. “As pragas estão acabando com a plantação e ninguém faz nada”, insiste, quase furioso. Passando a mão em sua testa coberta de suor, a esposa diz, ternamente, que pedirá veneno para matar as formigas. Ao invés de folhas, elas carregariam os grãos da morte para o ninho e ali fariam a última ceia. E o milho estaria a salvo.
Arte: Daniel Cunha
A mulher retoma o movimento interrompido da colher de mingau. “Depois eu como”, desconversa. Desanimada com a inapetência do homem, ela reinicia as massagens com uma mistura de ervas secretas e cheiro penetrante nas pernas, nas costas e nos braços do moribundo. Era a receita de um curandeiro local; não do médico. Não era desses óleos comprados em farmácia; sequer tinha rótulo. Mas o médico não precisava saber de nada. Sentia-se ofendido, quase ultrajado, quando seus pacientes profanavam a ciência, jogando-se nas mãos de charlatães. Não chegava a ser bem uma massagem o que a esposa fazia, era um leve deslizar de mãos porque ele não suportava qualquer pressão mais vigorosa nas suas carnes cada vez mais afundadas. As doses crescentes de morfina já não alcançavam a medida da dor. “Limpa as minhas unhas, estão muito sujas”, reclama, estendendo os dedos translúcidos, encravados por unhas transparentes. “Vou pedir um cortador de unhas para a enfermeira”, diz a mulher, oferecendo, agora, um pedaço de banana. “Guarda pra depois, tá?”, declina, um pouco frustrado, com a cabeça.
“Quando eu sair daqui, vou procurar pedras preciosas”, diz, subitamente tomado por uma vontade de superar todas as restrições que a vida lhe impusera. “Eu nunca devia ter parado de procurar o diamante. Eu sei onde ele está. Fica na transamazônica. Não tem nada mais lindo do que furar uma rocha e achar um diamante”, declara, com os olhos cada vez mais azuis e cada vez mais brilhantes. Segurando as lágrimas e exausta pelas noites de vigília sobressaltada, a esposa acaricia a cabeça do marido. O que ela faria com um diamante? Talvez colocasse cortinas nas janelas da casa. Era o tipo de luxo que nunca pudera ter. Mas, agora, nem as cortinas não queria mais. As prioridades na vida vão mudando, refletiu com pesar. Talvez nem abrisse mais as janelas. Entre os dedos, tufos de cabelos desprendidos da cabeça do marido a faziam despertar do torpor da imaginação. “Vou comprar terras e uma junta de bois novos”, continua o homem. “Olha lá, os bois estão atolados”, aponta, de repente, para o corredor do quarto. A mulher olha para o nada e grita, como costumavam gritar para os bois durante as lidas: “Anda, Ponteiro”. O homem sorri para ela com gratidão. Os bois voltam a puxar a carroça. Satisfeito, acompanha-os com o olhar. Eram bois grandes, tratados com o melhor pasto, o Ponteiro e o Cativo.
Inesperadamente, o homem pede para comer. A mulher mal acredita e, antes que mude de ideia, já lhe alcança uma torrada. Ele come com voracidade e pede a banana antes rejeitada. Pede também leite. Ele come com orgulho de si mesmo. Estava lutando. Venceria. Acharia pedras. Ainda daria tempo. Quando os bois desatolados finalmente saíram do quarto, o marido e a mulher deitaram abraçados na cama. Naquela noite, bem alimentado, e com o reforço extra do leite, ele angariara forças para fazer a sua travessia solitária para a terra prometida. Uma terra cheia de diamantes, quem sabe.
Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 21/01/2019.
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