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  • Foto do escritorMariléia Sell

Continuam jogando pedras na Geni

Geni esteve na minha sala esta semana. Não a Geni da canção de Chico Buarque. Era outra Geni, mas era também uma Geni feita pra apanhar. Tinha uma queixa a fazer, Geni. Seu menino, o caçula, estava sofrendo bullying na escola. A turma o chamava de gordo, saco de areia e fedorento. “Gordinho ele até é, mas fedorento, não”, garantiu, com orgulho ferido de mãe. “Meu filho tem problemas na cabeça”, explicou.  “Mas ele já aprendeu a ler e a escrever e desenha muito bem. Queria que tu visse a bicicleta que ele desenha, tem até os ferrinhos da roda”, conta, satisfeitíssima, sorrindo com todos os dentes da boca.  “Eu queria que ele estudasse um pouco mais”, sonha.


O empenho de Geni era comovente. E não era sem motivos. Além do caçula, tinha mais duas filhas, todos com galactosemia, uma doença hereditária que pode provocar, entre muitas coisas, atraso neurológico severo. A filha de 30 anos fora condenada à cama e nunca pudera ir à escola. A do meio, de 19 anos, até tentou, mas não deu certo. Tudo o que aprendeu em cinco anos de bancos escolares foi rabiscar algumas letras do seu nome. “Sofria muito bullying”, lamentou Geni. “Faziam ela de cavalo e montavam nela, jogavam pedras e cuspiam nela”. Definitivamente, o mundo letrado era negado para as filhas de Geni. Bem negado. Duas vezes negado. Além de não aprenderem a decifrar as letras, agora também não as podiam enxergar mais; estavam ficando cegas.

Mas Geni não era mulher de se entregar assim, teimosamente agarrava-se na esperança de que o caçula teria algum futuro. Afinal, ele conseguira alcançar o eldorado das letras. Inflada de esperanças, Geni assumiu o dever de investir na vida escolar do filho. Tinha até outras coisas importantes para fazer naquele dia: “eu tinha que ir a Porto Alegre buscar um leite especial”. Tinha também a questão das fraldas para a filha mais velha. Um político muito bem-intencionado a procurara para dizer que podia requerer o benefício do governo. Mesmo com tantas demandas em sua agenda, priorizara a escola do filho, antes que ele resolvesse desistir. Estímulo para desistir não faltava. A filha do meio o incentivava enfaticamente a largar a escola. “Ninguém presta”, repetia, como mantra, para todos que quisessem ouvir, e também para os que não quisessem, do alto de seu conhecimento epistêmico sobre escolas. Ela, a filha do meio, estava sem tratamento psicológico há mais de ano e o seu estado de saúde piorava visivelmente: “ela passa o dia sentada num canto”.  “Foram cortes nas verbas da saúde”, explicou Geni, com olhos vazios.

Já profundamente comovida com o calvário dessa mãe, pergunto se ela tem algum tipo de apoio. Além de não ter, eu descobriria que a desgraça é caprichosa nos seus excessos. O marido estava sem andar porque sofrera um AVC. “Sou eu pra tudo”, suspirou. Quem poderia ajudá-la eram seus outros dois filhos “normais”, que até então Geni não havia mencionado na sua narrativa. Mas estavam “perdidos nas drogas”, não contavam. Viviam na rua. “Aparecem para comer de vez em quando e aí levam tudo o que podem carregar”, disse, com os olhos perturbadoramente azuis cravados em mim.

De repente, silenciamos, exaustas daquela catarse. Fixo o meu olhar em uma mancha de mofo na parede, enquanto tento achar algo razoável para dizer a Geni. Antes de conseguir juntar duas letras no meu cérebro, ela se adianta e diz, com a resignação de quem já se reconciliou com a vida, “Deus não dá uma cruz maior do que a gente possa carregar, não é, minha filha”?


 

Crônica publicada originalmente no jornal Visão do Vale em 31 de agosto, 2018 às 13:52

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