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  • Foto do escritorMariléia Sell

Dúvida

Atualizado: 18 de fev. de 2020

Assim que soube da gravidez, Valdete entrou na sua zona de conforto de mãe de meninas. Sabia, e o sabia com o ardor do inquestionável instinto materno, que seria outra menina. Era uma família em que só nasciam meninas. Existem essas famílias que não quebram tradições jamais. Há décadas, a avó já guardava os moldes de roupinhas de meninas na gavetinha de sua Singer com pedal porque sabia que os revisitaria indefinidamente. Só sabia ser avó de meninas.


Arte de Daniel Cunha a partir da ilustração de Anastasia Lobova


Todas os apetrechos da filha anterior de Valdete foram apresentados ao sol, lavados, higienizados, pintados com tintas novas e mais modernas. Porque tem isso: tudo se reinventa de uma gravidez para outra, há cores que simplesmente caem de moda. O berço recebeu uma laca branquíssima e ficou novo. O carrinho foi revestido com panos impermeáveis dessa vez, é sempre providencial estender a vida útil das coisas. Optou-se também por um pano mais escuro para disfarçar as manchas que, a despeito da impermeabilização, inevitavelmente surgem. O quarto recebeu duas demãos de um rosinha antigo, puxando um pêssego, se olhado bem de perto. Da outra vez, a aposta fora um rosa mais vivo, um tom abaixo de pink, mas as coisas eram mais discretas hoje em dia. Mais refinadas, considerou Valdete. Pensando bem, achava que tudo era mais cafona no passado; um passado que nem era tão passado.

A lista de nomes também já circulava para palpites da família e até mesmo de quem não era chamado às conversas. A futura mãe tinha várias ideias, mas pendia fortemente para Hanna. Gostava desse nome porque rimava com o nome da filha mais velha. Além disso, era alemão, e achava importante preservar as origens. Gostava de Helena também, achava nobre. Vira, na lápide de um túmulo do antigo cemitério da vila, a inscrição do nome Ana Catharina e também o havia registrado para considerações futuras. Achava-o forte, nome de imperatriz. Olívia era o nome da bisavó e cogitava, algumas vezes, homenageá-la. Quando Valdete bateu o martelo com Hanna, as madrinhas se puseram a bordar toalhas e toalhinhas, cobertas e cobertinhas. A definição do nome é importantíssima para organizar o enxoval, disso não restavam dúvidas.

O tempo avançava, a barriga de Valdete não acompanhava a pujança do calendário. A vó se mostrava um pouco desconfiada com o desenvolvimento lento do volume sob o vestido da filha, mas sem alarde, pois já tinha experiência que sobrava como avó e sabia que tais impressões poderiam causar reações desagradáveis no curso da jornada da mãe. E como se não bastasse, outras desconfianças, de outras ordens, surgiam entre as mulheres da vizinhança. Sim, também se comoviam com a magreza exagerada que Valdete exibia a esta altura, porém, o que mais lhes espantava era o formato do seu ventre, redondo, tal uma melancia. E isso, embora jamais cometessem a indelicadeza de pronunciar em voz alta, todo mundo sabia o que queria dizer.

E por que todo mundo sabia, cedo ou tarde, ainda que se tomasse o máximo de cuidado para que as palavras não escapassem ao ar livre, sem a proteção do lusco-fusco de uma cozinha entardecida, os rumores chegariam aos ouvidos de Valdete. Assim como as ervas daninhas que cresciam, no princípio sob a sombra das plantações, para, logo em seguida, se espalharem, ameaçando a abundância da colheita, os cochichos já não respeitavam a fronteira das paredes, corriam soltos feito uma praga de formigas. Como não era dada a especulações, foi fazer um exame, desses que mostram até os órgãos internos da bebê, e calaria a boca de todas elas. A ciência estava aí pra isso mesmo, pensou, para desmentir crendices.

As imagens não deixavam dúvidas, pelo menos para o médico. Valdete dissimulava a sua dificuldade de enxergar qualquer coisa na tela chuviscada, mas acreditava na capacidade de leitura do doutor. Perplexa, fazia sinais afirmativos com a cabeça, acompanhava as descrições como se o médico a conduzisse, pelas mãos, por um caminho muito escuro, e ela, tateando, desesperadamente, buscasse contornos de um mundo em desmoronamento. Se nem meninas nasciam mais em sua família é porque o mundo não era mais um lugar estável.

Um menino! Senhor, um menino! Repetia para si mesma, Valdete, mais e mais atordoada. E só de pensar que sequer poderia olhar para as vizinhas! E quando nascesse a criança... Não, não a criança, o menino! Um menino, quem seria capaz de prever tamanha calamidade!

O anúncio da maternidade inaugural de um menino veio marcado por sustos mal contidos. Toda a família se empenhou para acomodar a novidade. Novas pinturas, novos tecidos, novas costuras, improvisadas, sem moldes. Só os bordados estavam suspensos porque Valdete não conseguia pensar em um nome para o menino. As madrinhas empenhavam-se em pesquisas aprofundadas, dessas que analisam também a origem e o significado dos nomes. Cada sugestão, porém, era veementemente declinada por Valdete com a alegação de já ter tido alunos com esses nomes. E ranço com aluno indisciplinado estraga o nome pra sempre. Outros nomes, mais batidos, não queria, não achava graça.

Nessa indefinição, as semanas passaram e o bebê, finalmente, nasce. Nasce sem nome. Sem toalhas bordadas. Sem registro. Valdete continua tomada de dúvidas. Só sabia ser mãe de meninas!


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