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  • Foto do escritorMariléia Sell

Me salva, conta a minha história!

Escrevo crônicas há cinco meses. Cada semana dou à luz histórias diferentes. Parteira de palavras, trago para o mundo narrativas até bem banais, porque todas merecem subir à superfície e respirar. Porque a vida não tem mesmo um enredo fantástico. Ela é banal e feita de retalhos de acontecimentos, a maioria absolutamente sem graça. Essa confusão toda ganha alguma ordem na estrutura das narrativas. Pelas histórias é que organizamos os eventos caóticos da vida, organizamos, inclusive, o nosso pensamento, as nossas memórias. Fora das histórias nada existe; fora do discurso nós mesmos não existimos. Nessa lógica, negar a história de alguém é negar a própria existência dessa pessoa, é um processo de aniquilamento, de não reconhecimento, ou, como diria o sociólogo Erwing Goffman, de derramamento de sangue. Por isso, contar histórias é como parir crianças.


Para a minha surpresa, um fenômeno interessante vem ocorrendo desde que comecei a publicar textos. Pessoas, especialmente mulheres, me acionam e pedem que eu conte as suas histórias. Provavelmente pela minha vertente feminista, desprovida de julgamentos. Essas mulheres querem ser narradas. Elas querem existir. Quando elas se enxergam nas narrativas, algo que lhes era negado, é devolvido. Quando historicamente escutamos sempre as mesmas histórias, sem versões alternativas, o mundo passa a ser um lugar restrito. Como diria a fabulosa escritora nigeriana, Chimamanda Adichie, o problema das histórias únicas não é que elas sejam falsas; o problema delas é que são incompletas.

Na semana passada falei da Margarete, uma mãe não capturada pelas convenções sociais de performance da maternidade. Muitas mães se manifestaram, comoveram-se com a história, mostraram empatia. Uma mulher me escreveu pedindo que eu falasse de um outro tipo de mãe. A mãe separada que deixa o seu filho com o pai. A mãe que paga pensão e busca o filho nos finais de semana. A mãe que opta por estudar e trabalhar para garantir autonomia para si mesma e assegurar também melhores chances para o futuro do filho. Uma mãe fora da curva das expectativas. Porque isso é coisa de homem. Homem tem a licença social de sair para o mundo, liberado da vida doméstica. Ninguém, absolutamente ninguém se abala com um homem que sai de casa, que desaparece no mundo, que abandona um filho, que não paga pensão. É coisa de homem. É tão normal que sequer vira tópico de conversa. Para que topicalizar o óbvio, não é mesmo? A gente aponta aquilo que é incomum, inusitado, escandaloso, aquilo que provoca um grande desequilíbrio no mundo. A gente aponta as mães. Aquelas que não são mães de verdade. As que tiveram um comportamento masculino. Um comportamento que toleramos somente nos pais.

O pedido desta mulher me comoveu profundamente. Fiquei pensando em como é solitário o processo de rompimento com padrões sociais cristalizados. O preço a pagar é o banimento das histórias oficiais que falam sobre a maternidade, sobre um único tipo de maternidade. O apelo desta mulher é, de certa forma, um pedido de restauração de sua dignidade como mulher e como mãe. Ela compreendeu, através da história da Margarete, que se mais histórias forem contadas, sobre mães e mulheres que não seguem roteiros sociais pré-estabelecidos, mais ampliaremos o nosso repertório de possibilidades de existência. Menos sofreremos com a violência das histórias únicas, daquelas que empacotam todas as pessoas em um único saco. Daquelas que impõem sobre nós um único molde. Percebi que a narrativa da Margarete era potencialmente libertadora, porque outros aspectos das mães e das mulheres estavam representados, ganharam existência. Percebo, a cada texto que escrevo, que posso contribuir para dar visibilidade a performances identitárias marginalizadas. É a ideia radical de que a palavra liberta. A palavra que reconhece o outro e a outra. A que não lhe nega a face. A palavra que salva!


 

Crônica publicada originalmente no jornal Visão do Vale em 16 de maio, 2018 às 13:12

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