Mariléia Sell
Não matarás
Não matarás. Esta é a lei entregue aos homens e às mulheres por ninguém menos que o próprio Deus. Não um Deus customizado, que se adapta àquilo que cada um precisa para deitar a cabeça no travesseiro e dormir o sono dos justos. Não um Deus que aprova armas. Não um Deus que endossa discursos de aniquilamento em altares erguidos em seu nome.

Arte: Daniel Cunha
Não matarás! Não matarás teu semelhante, seja com a arma ou com a caneta que assina leis que tiram a dignidade do povo. Sim, porque a bala pode vir em forma de assinatura. Com uma despretensiosa Bic que seja.
Não matarás porque Deus, o Deus acima de todos, nos entregou esse mandamento sagrado. Não para fazer a justiça dos homens e das mulheres, em nome de uma ordem nacional, essa justiça que acha atenuantes para fuzilamentos. Essa justiça que não se escandaliza com 80 tiros disparados contra um inocente. Essa justiça que emudece e sequer sente vergonha. Essa justiça que reclassifica assassinato como um ‘incidente’ que ‘pode acontecer’.
Os 80 tiros disparados pelo exército brasileiro, desse Brasil acima de tudo, contra a família de Evaldo Rosa dos Santos mataram a nós todos. Assassinaram a nossa humanidade. A justiça assassina nunca mais nos deixará dormir tranquilos porque todos nós somos Evaldo. Mesmo aqueles que não se reconhecem em Evaldo, mesmo esses são Evaldo. Porque nós todos somos o outro. ‘Amar o próximo como a si mesmo’, Deus também disse.
Nesta próxima sexta-feira santa, quando Jesus fará a sua via sacra milenar e quando subirá na cruz, já cansado de tanto subir, Evaldo estará lá. Marielle também. Milhares de brasileiros e brasileiras estarão lá. O horror da cruz de Jesus continuará afetando os fiéis que irão às igrejas. A vergonha pelo que a humanidade foi capaz de fazer com o filho de Deus inundará os corações cristãos. Mas, como olhar nos olhos de Evaldo, pendurado ao lado de Jesus? Como não se reconhecer nos olhos de Evaldo? Como não assumir que o gatilho assassino foi puxado por todos nós? A fé é cega e pode acomodar os dilemas morais mais elásticos, mas uma coisa é certa: Deus não é ajustável à nossa imagem. Deus tem que ser melhor que isso!
Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 15/04/2019.