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Foto do escritorMariléia Sell

Natal sem wi fi

A notícia fora anunciada pelas mães da família, assim, de forma inesperada e sem possibilidade nenhuma de negociação: o natal seria comemorado na casa da avó. A notícia mal fora proferida e movimentos de resistência puderam ser registrados entre os netos, dos mais novos aos mais velhos. Mas as mães, criaturas treinadas na arte da guerra, são capazes de incitar um abaixar de armas só com um olhar. E os filhos sempre entendem um olhar de mãe. Ok, não haveria protestos e insurgências. Depois de entregues as cartas ao Papai Noel, depois de acertados os presentes e depois de ajustadas as condutas para merecer os presentes, qualquer sinal de desobediência poderia pôr tudo a perder, e ninguém era louco para arriscar.


Arte de Daniel Cunha a partir da ilustração de Netalula (perfil flickr)

Depois de assimilada a realidade do natal, todos lançaram-se a planos secretos para sobreviver ao nascimento de Jesus sem acesso à internet.  A avó nunca fizera questão de instalar uma antena. Solenemente, quando a lucidez permitia, porque tinha lapsos horríveis de memória, dizia que quando os netos vinham visitá-la, era para conversarem e não para ficarem pendurados nos celulares e nos tablets. A resistência à tecnologia promovera um quase isolamento da velha. Nem a cuca de canela era argumento suficiente: “não precisa se incomodar, vó; só demos uma passadinha”.

No dia em que todos os netos se sacrificavam pela unidade familiar, sentiam-se santificados pela sua capacidade de abnegação. Ouviriam com atenção as histórias da avó, fingiriam interesse até. Não falariam em política, sempre era perigoso esbarrar no comunismo, e não fariam comentário algum sobre a amizade do primo Rafael com Alex. Estavam, afinal de contas, todos empenhados para estarem com a avó, sem sobressaltos, sem desconfortos. Não era esse o espírito do natal, afinal de contas? E o espírito natalino era sempre lembrado enfaticamente, com voz grave e aveludada de barítono, por tio Augusto, o responsável por puxar a oração da ceia.  Entrava ano e saía ano e ele mantinha o posto porque tinha boa oratória e estudara para ser padre. Gostava que lembrassem dessa parte do seu currículo. Não que fosse vaidade; não era.

Todos dispostos ao redor do peru inflado e reluzente confraternizavam na data cristã mais importante. Estavam todos realmente dispostos a tolerar as diferenças. O amor, afinal, prevaleceria sobre tudo. Estavam aqui pela matriarca da família, aquela que fora capaz de sacrifícios impensáveis para que a família, depois de gerações, estivesse de pé.  Estavam todos muito focados na avó, centrariam as atenções nela. Se quisesse, só ela falaria a noite toda. E todos escutariam. E fariam perguntas, genuinamente interessados no inventário de histórias da família. Um dia, quem sabe, contariam essas mesmas histórias em alguma mesa de natal.

Depois de demarcadas as partes do peru, os pratos recheados e os espíritos exultantes, todos esperavam que a avó abrisse a rodada de conversas. Esperavam pacientemente que ela contasse alguma anedota do passado. Todos ririam e voltariam a encher os copos. Ela contaria novamente como ela e o avô superaram as agruras de um passado nada gentil, de um passado sem terras e sem pão, tudo com toques de humor porque a pobreza era mesmo uma piada sem fim. Todos reagiriam com espanto e admiração. Contaria como era ser mãe de seis filhos sem nenhum dinheiro e sem nenhum apoio. Em uma época sem fraldas descartáveis, sem micro-ondas e sem licença maternidade. As mulheres da família ficariam especialmente comovidas e agradeceriam à modernidade, sem, é claro, mencionar o feminismo, palavra proibitiva.

Estavam todos esperando. E esperando ficariam. A avó olhava para todos fixamente, sem pronunciar uma única palavra. O silêncio da avó era a sua revolução. Uma revolução contra a hipocrisia.

 

Texto originalmente publicado em Visão do Vale, em 25/12/2018.


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