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  • Foto do escritorMariléia Sell

Não sou obrigada

Em uma das minhas corridas diárias de Novo Hamburgo a São Leopoldo, de São Leopoldo a Novo Hamburgo e de Novo Hamburgo a São Leopoldo (sim, as vezes encontro comigo mesma no meio do caminho), meu carro resolve fazer a sua rebelião pessoal. A cada acelerada, ameaçava explodir. Não adiantaria de nada parar o carro, abrir o capô e olhar, com aquela cara de quem está seriamente analisando uma situação, a misteriosa engrenagem do motor. Seria como a minha mãe costuma dizer “o mesmo que olhar debaixo do rabo da vaca”. Atrasada, continuei a jornada e logo esqueci o manifesto, talvez tivesse sido algo ocasional, algo passageiro, sem uma consistência que merecesse maiores preocupações. Aumentei o volume do rádio. No dia seguinte, foram duas ocorrências. Sem tempo de ir ao mecânico, descobri a manha: era só não acelerar demais e eu podia dirigir, devagar, bem devagar, mas podia. Atrapalhei seriamente o ritmo do mundo nesses dias.


Liguei para um mecânico super-recomendado, supercompetente, super-honesto, supertudo. Expliquei os sintomas do carro, o ano, a quilometragem, a potência, as válvulas, o tipo sanguíneo e ainda acrescentei, repetindo, como papagaio de pirata, o que me disseram, que talvez fosse problema na injeção eletrônica. Visivelmente ofendido pela minha avaliação amadora e sem fundamento tecnológico-científico nenhum, ele retrucou: “não é eletrônico o problema, é mecânico”, naquele tom de autoridade que anos de prática na oficina lhe deram. Perguntei se ele resolvia problemas que fossem mecânicos e não eletrônicos. “Eu preciso ver o carro”, disse, ainda injuriado. “Bem, e se o problema for mecânico, o que pode ser?”, perguntei. “O problema É mecânico”, retrucou, com uma exagerada ênfase no É. O fato de eu não ter assumido o seu diagnóstico como definitivo o deixou visivelmente aborrecido.  Já sem saber como usar as palavras, pergunto:  “certo, o que é, então?”. “É a embreagem”, disse, sem acrescentar detalhes. Eu que decifrasse o que isso significa. “Isso é caro?”, perguntei, já prevendo rombos no meu cartão de crédito. “Tu vai gastar entre 900 e mil reais”, disse, sem maiores abalos.

Essa interação ocorreu cedo da manhã, eu tinha acabado de chegar ao meu trabalho, atrasada porque não podia acelerar, com uma dezena de pessoas para atender e, de repente, fui tomada de um senso de ultraje tão grande, mas tão grande, que agradeci a avaliação do mecânico e disse que buscaria a opinião de outro profissional. Percebi que ele ficou sem reação. Ele até tentou retomar a conversa. Tarde demais. Ele podia entender de embreagens, mas eu entendia de interações humanas. Desliguei o telefone.

Ao meio dia, acelerando cada vez menos para não ficar empenhada, uma colega de trabalho que acompanhou toda a saga ligou e disse que o marido trabalhava em uma revenda de carros e que tinha o contato de um mecânico de confiança. Peguei o número, sem grande euforia. Nunca tive muita sorte com mecânicos. Nem com pedreiros, nem com eletricistas e nem com técnicos de todas as ordens. Todos sempre fazem eu me sentir uma estúpida garotinha de pré-escola. Mas não tinha opção. Liguei. Dessa vez, economizei nas opiniões e nas perguntas, não queria passar atestado de burrice. O mecânico escutou atentamente. Não interrompeu. Não fez observações com tom de voz irritado. Perguntou algumas coisas e confirmou o diagnóstico do mecânico anterior. Pela primeira vez na vida não me senti na obrigação de saber de mecânica quando falo com um mecânico. Afinal, sei de outras coisas. Afinal, pago um mecânico justamente porque essa não é a minha profissão. Afinal, não sou obrigada a saber nada de mecânica porque nunca vou consertar o meu carro. Afinal, não exijo de nenhum mecânico conhecimentos avançados em linguística aplicada. Paguei a esse mecânico 573 reais e registrei o seu número de telefone!


 

Crônica publicada originalmente no jornal Visão do Vale em 24 de agosto, 2018 às 13:03

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