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  • Foto do escritorMariléia Sell

Nós, os vermelhos

Atualizado: 25 de out. de 2018

Nós agora somos os vermelhos. Recebemos essa tarja porque é importante homogeneizar os grupos para, então, estigmatizá-los e coisificá-los. A homogeneização apaga qualquer traço de ambiguidade ou de subversão às normas e expectativas sociais. Uma vez que esse grupo é identificado, embalado e etiquetado, é mais fácil banir, prender e matar. “Não daremos sossego aos vermelhos; terão que se curvar ou deverão deixar o país ou, ainda, serão presos”. Quando o inimigo comum da nação é criado, a massa, antes disforme e confusa, fica unificada. Como tem a missão patriota de destruir o inimigo, essa mesma massa esquece um pouco das desgraças diárias e rende-se à promessa da proteção por líderes poderosos e armados. É a sensação reconfortante de, finalmente, ter um grande líder predestinado a salvar o povo da miséria material e moral. É uma expectativa quase infantil de um pai supra poderoso que cuidará de seus filhos. E os filhos obedecem a esse pai, um pai que dá as ordens.

Arte de Daniel Cunha com ilustração de John Holcroft.

Os dois minutos de ódio diários são explorados à náusea. É quando o povo dá vasão as suas frustrações e transforma a sua impotência em uma bandeira maior. O cidadão comum é convocado a ser um soldado. E como soldado, engaja-se na tarefa de construir uma nação soberana, altiva. “O Brasil acima de tudo”. “Nossa bandeira jamais será vermelha”, gritam, raivosos. “Não seremos um país comunista”, esbravejam, sem ter muita clareza histórica do que seja comunismo. “Quando o Bolsonaro ganhar, vai acabar essa putaria”, ameaçam, em nome da família e dos costumes.  “Ele varrerá esses lixos da rua”, urram com propósitos higienistas. “Acabou a mamata dos vermelhos”, gritam de dentro das suas caixas de papelão, fazendo troça sobre o caixa dois do capitão honesto. “São fake News”, espumam quando a mídia revela estratégias de manipulação das informações. Bordões simples, nada muito complexo, não há espaço para o contraditório, para o complexo, apagam-se todos os meandros de um debate. “Quatro patas, bom. Duas patas, ruim”, dizem as ovelhas, na Revolução dos Bichos, comandadas pelos porcos triunfantes.

É tudo tão distópico que parece saído de algum clássico de George Orwell. Mas a tragédia é real. Assustadoramente real. Tudo gravado e replicado, não em debates, como seria o esperado durante um processo eleitoral em que, supostamente, o povo vota no melhor projeto para o país, mas no formato unilateral do discurso, da entrevista encomendada. Não há debate porque não há disposição para discutir. Em regimes autoritários, não se discute nada, a ordem do silêncio impera em toda a sua glória. E a ameaça instala-se sobre todos os inconformados. Obedece-se. E pronto. A poderosa máquina midiática do capitão espalha a sua campanha santa. É o Garganta modificando os mandamentos para alterar a percepção do povo. E como não se vive só de promessas terrenas, Moisés, o corvo, espalha as promessas do céu. Lá onde tem infindáveis torrões de açúcar. “Deus acima de todos”, repetem os cidadãos de bem, os cachorros da revolução, esperando, ansiosamente, a licença definitiva para exterminar os inimigos: os vermelhos.

 

Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 24/10/2018.

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