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Foto do escritorMariléia Sell

O despertar de Haroldo

Não era que houvesse qualquer intenção premeditada por trás do acontecimento, que ele tivesse sido talhado para tal destino. Mas o tempo passou, ao menos um Natal superado. Andava entre os membros da família, que de tempos em tempos se espantavam com sua presença, experimentavam certa estranheza ao notá-lo no meio deles, embora na maior parte dos dias mal o percebessem. Um bicho de estimação, era o que Haroldo se tornara. E acostumado à vida doméstica, acompanhava com imenso interesse a renovação da decoração da casa; sentia especial fascínio pelas centenas de luzinhas piscantes dispostas na varanda e na sala. As vezes, ficava paralisado com o efeito hipnótico do piscar multicolorido. Gostava de se deixar ficar debaixo do pinheiro, dava-lhe uma sensação indescritível de aconchego e paz. Gozava de todos os privilégios de sua posição recém adquirida e engordava a olhos vistos. Abanava o seu rabo curto em satisfação redobrada cada vez que alguém o afofava em arroubos exagerados. Haroldo não conseguia imaginar vida melhor que a sua, mais segura, mais despreocupada. Tinha comida fresca em abundância, carinho de uma família amorosa e próspera e livre trânsito por todos os cômodos da casa. Isso era demonstração clara de confiança, ele sabia, porque aos animais, muitas vezes, fecham-se as portas, proíbem-se os acessos. Ele sabia também que nem todos eram assim tão afortunados, na verdade havia parentes seus que amargavam fome e abandono. A simples ideia lhe apertava o estômago; não que tivesse grandes preocupações sociológicas; não alcançava pensamentos abstratos sobre desigualdade e distribuição de riqueza, mas a visão crua e desprovida de teorias de um prato vazio era, realmente, algo aterrorizante para Haroldo.


Arte de Daniel Cunha, a partir da ilustração de Alex Willmore


Haroldo tivera a sorte de ser adotado por gente rica, do tipo que não se ocupa com o preço do gás, do tipo que discute coisas mais elevadas à mesa, como as flutuações cambiais, o aumento absurdo do salário mínimo e os perigos do comunismo. Haroldo jamais saberia nada sobre o câmbio e menos ainda sobre o comunismo, mas sabia que a sua família entendia do funcionamento do mundo. Eram todos bem sucedidos e bons; isso provava tudo. Em raros lampejos de algo que talvez se aproximasse de uma consciência primitiva, Haroldo sabia que a sua vida poderia ter sido bem diferente. Fora um privilegiado, um escolhido por força dessas casualidades da vida; ele mesmo tinha notícias de pets que dividiam a miséria com os seus donos, com barrigas vazias e sarnas tomando os couros: que graça teria isso, considerou, enfiando o focinho nas alpargatas do patriarca, ansioso por afagos e comida.

As preparações para o que Haroldo viria a saber que era o Natal avançavam a passos largos. Acompanhava as conversas animadas sobre a lista de convidados para a ceia, sobre os pedidos das crianças ao papai noel, sobre os planos de férias em países muito distantes e muito gelados. Via muitas pessoas correndo, apressadas, preparando quartos, aparando plantas no jardim, limpando as águas da enorme piscina. Esbaforida, todos os dias, sua dona vinha da rua e depositava mais presentes sob a enorme árvore piscante. Haroldo não conseguiria traduzir a sua gratidão, não tinha palavras, literalmente, para dizer que tinha uma família perfeita.

Com a aproximação da data, os preparativos da festa atingiam um clímax em todo o seu rigor. Haveria muitas iguarias regadas a vinhos e espumantes importados. A família gostava de trazer tudo de fora, era de qualidade superior. O prato principal seria pernil, sem dúvida, mas não serviriam um desses porcos comprados, sem procedência, que poderia até trazer doenças. Deus os livrasse! Para isso, tinham o seu próprio porco, criado a pão de ló. Debaixo da mesa, Haroldo acompanhava os rumos da conversa com certa inquietação, não era de todo burro e compreendia que haveria um sacrifício. Claro, isso não o atingia diretamente, era um pet, estava a salvo, mas, mesmo assim, um alerta se acendia internamente; começou a acompanhar as conversas com as orelhas em pé, muito atento. O porco que serviria a ceia, consideravam, estava gordo e gozava de saúde esplêndida. Não era desses porcos alimentados com lavagem, nada disso. Era também um animal bem tratado, feliz, e isso, todos sabiam, interferia no sabor da carne. Nada de consumir animais sofridos; adrenalina na carne fazia mal à saúde.

Haroldo começou a ter noites insones por essas épocas. Seus pensamentos já não orbitavam unicamente em torno da próxima refeição. Não sabia definir, ao certo, o porquê, mas seu coração estava tomado de incertezas, os contornos estáveis do seu mundo insistiam em esfarelar-se. Pensava no animal que seria servido na ceia de natal e os seus pelos curtos e espetados se ouriçavam todinhos. Em crescente desconforto, já não sentia a mesma paz de antes, não saberia explicar, assim como não se explicam maus pressentimentos.

Com o dia da ceia cada vez mais próximo, as músicas aterrorizantes de Natal estourando de minuto em minuto no rádio, a dona da casa, um pouco escandalizada e já prevendo mais correrias para a organização do jantar, ostenta para a empregada o prato que acomodaria o pernil: “não vai caber”. Ato contínuo, lançou olhares analíticos a Haroldo. E ele, que a vida inteira, em limitada compreensão da própria realidade que cercava seu mundo, interpretava como privilégio o destino de uma jornada no seio de família tão abastada, sentia calafrios que lhe subiam pelas patas ao sentir os olhos da mulher cravados em seu espinhaço gordo; diversas luzes de alerta, luzes nervosas e piscantes, acenderam-se no juízo de Haroldo, estava completamente acordado. Naquele mesmo instante, compreendeu que ele seria a janta do Natal. Num raro momento de epifania, compreendeu que era um porco e não um cachorro.

Na ceia, constrangida e humilhada, a dona da casa serve um peru de supermercado aos convidados, desses que aparecem em propagandas na televisão, nada exclusivos, certamente cheios de hormônios, desses que faziam muito mal à saúde. Na antevéspera do Natal, tal como se adivinhasse o efeito que seu ato causaria nos planos da família de oferecer um jantar exclusivo, Haroldo desapareceu.

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