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  • Foto do escritorMariléia Sell

O pobrema é seu, doutora

Atualizado: 7 de mar. de 2019

As redes sociais têm disponibilizado material riquíssimo para análises sociológicas e antropológicas. Mais do que o conteúdo das postagens em si, os comentários rendem verdadeiros tratados. Um princípio amplamente estudado pela Linguística Aplicada é o de que cada enunciação é uma autoenunciação. Ou seja, quando alguém comemora nas redes a morte de uma criança de sete anos a pergunta que imediatamente qualquer pessoa sensata se faz é a seguinte: que tipo de gente faria um comentário desses? Isso porque cada vez que falamos uma palavra é ela, a palavra, que nos fala.  Todo julgamento que fazemos sobre o outro ou sobre o mundo nos desnuda, mostra quem, de verdade, somos. É, portanto, sempre sobre nós mesmos e não sobre o outro.


Arte de Daniel Cunha a partir da ilustração de Olivier Bonhomme

Quando o ministro da educação enviou comunicado a todas as escolas brasileiras para que fosse cantado o hino nacional, que as performances fossem gravadas e enviadas ao MEC, a despeito de todas os impedimentos tecnológicos, e que fosse recitado em uníssono, como o seria em qualquer cenário distópico das grandes ditaduras, o lema da campanha do presidente recém eleito, novamente o povo lançou-se furiosamente às redes para opinar.  Afinal, o importante é ter uma opinião. Há uma obrigatoriedade de emitir um parecer sobre tudo, mesmo que não se tenha conhecimento remoto sobre a questão em pauta. Pois bem, foi difícil de explicar que o problema não era cantar o hino nacional, embora, correm especulações, nem o presidente, apesar de toda a experiencia militar, o saiba cantar direito. O problema é bem outro, de outra natureza, mas aí era preciso uma capacidade de analisar um pouco abaixo da superfície rasa do senso comum. Não que fosse necessário muito conhecimento, realmente não era, bastava apenas ter dado uma passada de olhos rápida, nada muito detido, nas leis brasileiras, que dizem ser crime expor a imagem de crianças sem autorização expressa dos responsáveis. Elas dizem também que é proibido propagandear slogans políticos nas escolas, e olha que essa lei existe antes de virar moda falar em doutrinação ideológica pelos professores comunistas e antes de inaugurarem o Escola Sem Partido. Mas, claro, as pessoas tinham uma opinião e precisavam vomitá-la. Tinham pressa de fazê-lo. E sem constrangimento nenhum, o que seria normal para qualquer pessoa que se reconhece ignorante em alguma área do conhecimento, e todos somos ignorantes em inúmeras áreas. Mas a questão é justamente essa, quem não sabe não tem sequer elementos para saber que não sabe. Mas acha que sabe. Sabe mais do que os especialistas. “Ah, mas no meu tempo cantávamos o hino nacional; no meu tempo apanhávamos, no meu tempo acreditávamos em cegonhas que traziam nenês” e, vejam só, quantos cidadãos de bem temos por aí. Esse argumento solidamente embasado basta para resolver todos os impasses. Basta que a pessoa assuma as suas crenças pessoais como teses científicas e qualquer argumento lógico é automaticamente dispensável.

Pois bem, uma advogada, uma pessoa que, presume-se, estudou leis, opinou a favor da medida do ministro da aberração, digo, educação, apelando para a sua experiência epistêmica de cantar o hino, com saias pregueadas e tudo mais. Marchando, inclusive. A graduada em direito, que não abre mão de assinar “doutora fulana de tal”, atacou, na contenda, um outro manifestante que escreveu que a educação tinha pobremas muito mais sérios com que se preocupar do que ficar mandando gravações do hino. A doutora caiu de sola no manifestante, mandando-o imediatamente de volta aos bancos escolares para aprender a escrever direito. Na sua resposta, ela não mencionou nada sobre aprender a argumentar. Antes de ele opinar sobre assuntos tão complexos, continuou a doutora, que se alfabetizasse primeiro. Ela não perderia seu valioso tempo nos fóruns virtuais argumentando com alguém que falava pobrema. Pessoas que falam pobrema não reúnem credenciais suficientes para terem a sua opinião levada à sério. A doutora tinha mais o que fazer. Mais opiniões a dar!


 

Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 06/03/2019.

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