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  • Foto do escritorMariléia Sell

Os miseráveis

O trajeto para o trabalho, uns 15 minutos de carro, fornece material empírico suficiente para um tratado sociológico dos tempos modernos. Um tratado sobre modelos políticos e econômicos. A cada sinal de trânsito, o desfile da falência social. Uma exposição ilustrada da incompetência do Estado. No caminho da ida, no mesmo sinal, todos os dias, encontro o mesmo pedinte. “Tem um troquinho, pra eu comer”? Quase sempre digo que não tenho e quase sempre ele me adverte que podia estar roubando. Quando alcanço algumas moedas, ele sorri um sorriso largo e sem dentes e me abençoa: “que Deus proteja a senhora e sua família”. Digo amém, enquanto tento me desvencilhar do moço do abacaxi, “o mais doce e barato da região”.  “Não gosto de abacaxi”, esclareço. “Leva para o marido”, insiste. “Não tenho um marido”, rebato. “Mas de bergamota a senhora gosta, né? Só cinco reais o balde”. Ou morango? “São quatro caixas à dez pila”. Pelo retrovisor, vejo o moço da rapadura e dos panos de prato avançando. Ele chega tarde no vidro do carro; o sinal abriu. Piso no acelerador e respiro aliviada.

Arte de Daniel Cunha

Acelero e torço para que o próximo sinal esteja verde. Não está. É o sinal dos índios. A mãe fica com um olho no artesanato e outro nas crianças que se esgueiram entre os carros para vender filtros de sonhos.  E ainda outro olho no bebê que está amamentando. A crise também atingiu o mercado dos filtros de sonhos. A saída é pedir uma “moedinha”. No mesmo sinal, de infinitos tempos, tem também o moço com deficiência. Está lá desde que o mundo é mundo. Costuma fixar seus olhos grandes e saltados diretamente no olho dos motoristas e das motoristas. E ali fica. Até abrir o sinal. Se ao menos ele fosse embora depois de ouvir que não receberá dinheiro. Mas não. Ele fica. E fica olhando. Seus olhos atravessam o vidro do carro. Não há blindagem possível para aqueles olhos.

Prego os meus olhos nas lâmpadas do sinal, à frente, no alto. Como pode um semáforo demorar tanto a abrir, penso, com a sensação de estar ali desde a Idade Média. Enquanto espero, posta-se na frente do meu carro o moço do cartaz de papelão, com letras irregulares e mal calculadas. Daqueles cartazes em que a letra começa grande, cheia de pretensões, e, lá pelas tantas, vai diminuindo porque o escrevente percebe que não haverá espaço suficiente. Ele está juntando dinheiro para comprar um lanche. “Sou morador de rua e estou com fome. Me ajude com 10 centavos. Deus abençoe”.  O “abençoe” ficou seriamente prejudicado pelo erro de cálculo do cartaz. Ficou espremido e, na verdade, só é legível porque, pelo nosso conhecimento de mundo, acomodamos o par relacional Deus e abençoar no mesmo campo semântico.

Sigo, impávida, pelo caminho menos movimentado para o meu trabalho, pela linha do trem, o mais novo condomínio dos miseráveis. Protegidos pela estrutura colossal de cimento, erguem suas casas de papel e de lata. E improvisam quintais para os seus cavalos. Ostensivamente, estacionam as suas carroças de reciclados. Os seus arranjos interferem na paisagem urbana. Tão planejada que foi essa obra do trem, para não trazer prejuízos estéticos à cidade! São os miseráveis da era moderna, aqueles cuja existência é uma afronta à vida imperturbada em nossas bolhas.  Aqueles que, incomodamente, nos lembram do nosso fracasso enquanto humanidade.  Os indesejados.


 

Texto publicado originalmente no jornal Visão do Vale, em 15 de setembro, 2018 às 13:01

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