top of page
  • Foto do escritorMariléia Sell

Roda de canastra

Atualizado: 5 de dez. de 2018

Todas vão se achegando,  lentamente vão entrando na casa da anfitriã, a que convidara as amigas para um carteado. Sábados à tarde, desobrigadas de suas intermináveis tarefas de donas de casa, donas de roça e donas de todos os espaços onde houvesse trabalho, reuniam-se. E nunca era só um jogo de cartas. Ah, não era mesmo. Ali, entre trincas e coringas, canastras e batidas,  inteiravam-se de tudo, trocavam impressões, receitas, dicas de plantio, lamentos, segredos e mudas de flores. Passavam também em revista a vida de todo mundo. Ninguém escapava daquela roda do juízo final.


Arte de Daniel Cunha a partir da ilustração de Josefina Schargorodsky

Desde que entrara pela porta, a porta da frente, registre-se, porque seria de péssimo tom as visitas serem recebidas pelos fundos, e essa é uma etiqueta  rigorosamente observada naquele canto do mundo, Olga mal disfarçava a sua comoção com o interior da casa. Um pouco abatida, a mulher reparou que a anfitriã tinha um lar ricamente decorado: “ela tem as coisas mais lindas do mundo”, pensou, cada vez mais ressentida.  A casa de Olga era mais austera, tinha o que era absolutamente necessário. Não que faltasse nada, mas os  recursos nunca alcançavam patamares estéticos mais elevados.

Perturbada com tanta beleza, Olga esforçava-se para formar uma canastra. Prestava toda a atenção possível na pontuação. Atenção que era disputada com as flores coloridas, de plástico, espalhadas pela sala. Tão lindas! Trincas de áses eram valiosas. Mas eram tão valiosos, e impagáveis, os bibelôs brilhosos espalhados na estante da dona da casa! Desesperadamente, buscava angariar reis, damas e valetes. Pontuar era necessário. A suntuosidade arrogante da casa da amiga já era, em si, muita humilhação. Não podia perder a sua lendária reputação de jogadora. Era coisa demais para perder em um único dia.

“É época de transplantar as margaridas”, anuncia Joana, depositando sobre a mesa uma dama de espadas. “Alguém tem mudas?”, pergunta Olga, subitamente interessada no tópico, lançando olhos cobiçosos para a carta sobre a mesa. Sua filha pedira margaridas no jardim! “As galinhas estão pondo poucos ovos”, lamenta Érica, fechando uma trinca de valetes. “Eu tenho ovos, se quiser”, solidariza-se Elaine. “Joaquim está com uma tosse de cachorro ”, desabafa, preocupada, Valéria, desejando ardentemente a dama ainda depositada na mesa. “Já experimentou coração de bananeira com melado?”, aconselha Joana, do alto de sua experiência de três filhos asmáticos.

A mesa fartamente posta do chá da tarde era outra afronta. Olga precisava aprender aquela receita de bolo de laranja! Tão fofinho! Tão amarelo!  Orgulhosa, a anfitriã compartilhava as  receitas. Certamente não revelava tudo, pensou Olga, cada vez mais ressentida. O maior legado de uma dona de casa são as suas receitas secretas, todo mundo sabia disso!

Com olhos maliciosos, Elaine deposita, de forma calculadamente estalada, um ás de copas. “Margarete pediu separação”, vocês sabiam? Todas paralisam na mesma hora. “Ela me disse pessoalmente”, asseverou, adiantando-se a quaisquer dúvidas sobre a veracidade dos fatos. Chocadas, todas se desconcentram das promessas sobre a mesa. “Por que Margarete iria deixar Valdemir”?, interrogaram em uníssono. “Um homem tão trabalhador”, lembram algumas. Fica o mistério. Não são encontrados elementos suficientes para justificar tal insanidade. Existem mulheres assim, incompreensíveis, analisam todas, com um certo fascínio, muito bem disfarçado.

Enfim, as cores no horizonte anunciam o final da tarde. É hora de cada uma voltar para o império do lar, onde são rainhas absolutas. Despedem-se levando mudas de flores, receitas, ovos, banha de porco. Despedem-se fortalecidas para voltar ao seu domínio. Porque mulheres reunidas em uma roda consertam o mundo, reestabelecem todas as coisas quebradas. Em uma roda, as mulheres curam, alimentam e, de forma muito inconsciente, se inspiram em mulheres subversivas, que quebram as regras descaradamente. Mesmo que não se fale delas, das revolucionárias, elas estão lá, ao alcance daquelas que precisarem de sua inspiração.

 

Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 25/11/2018.

86 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page