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  • Foto do escritorMariléia Sell

Até que a morte os separe

Atualizado: 30 de ago. de 2018

Os dois formavam um casal de novela: jovens, bonitos, ricos e estudados. Nas redes sociais, ostentavam toda a sua felicidade em dentições perfeitas. A vida nunca lhes negara nada. O futuro era só promessas. Ele defendia os valores cristãos e familiares. Reconhecia a família como a célula mais importante do grande organismo social. Como homem de família, tinha a missão de conduzir os rumos desta célula. Ela achava graça do marido: tão jovem e tão apegado às tradições. Ao mesmo tempo, achava-se amparada por alguém cujos valores eram tão firmemente assentados.



É certo que, às vezes, ela sentia-se um pouco incomodada com a assertividade do marido. Mas nada grave. Acabava cedendo para não contrariá-lo; ele sempre parecia saber o que estava fazendo. Era um homem firme e autoconfiante, não era desses que fraquejavam por falta de atitude. Para evitar aborrecimentos desnecessários com as pequenas miudezas da vida, deixava que ele decidisse as coisas. Às vezes, ele a corrigia nas suas opiniões, mas isso também não era motivo para desestabilizar a relação. Ele explicava detalhadamente a ela como as coisas funcionavam e tudo ficava certo. Pensando bem, às vezes, ela tinha dúvidas mesmo sobre a lucidez do seu próprio raciocínio. Nesse sentido, achava importante ouvir outras opiniões. Assim, ela organizava as ideias e elaborava o mundo a sua volta. Certas irrelevâncias, é necessário saber ignorar, pensava sempre, acionando uma lógica interna de economia. Tinha pavor daquelas mulheres que ficavam polemizando por qualquer coisinha. Achava desnecessário.

Com gosto, ele assumia a tarefa de fazer planos pelo casal. Para não dizer que não ouvia a esposa, as vezes aproveitava uma ideia ou outra e as incorporava nos seus planos maiores. Evidentemente, as ideias dela eram, no mais das vezes, descabidas.  Secretamente, ela ficava lisonjeada ao perceber que o marido acatava sugestões dela, mesmo ele não admitindo abertamente, mesmo creditando-as a si mesmo. Era o seu jeito de validá-la; ela compreendia bem. Ela sempre compreendia.

Por ter uma personalidade muito forte, de quem tem opinião bem cimentada, eventualmente elevava o tom da voz com a esposa. As vezes batia na mesa ou arremessava objetos. Nada demais, é só porque ele tinha muita convicção das coisas, não ficava hesitante e inseguro como tantos outros. Seus olhos não ficavam buscando aprovação alheia, como ela mesma faria. É natural que pessoas com um poder de compreensão mais privilegiado fiquem aborrecidas, vez ou outra, com os que ainda não alcançaram esse patamar de afirmação pessoal. É um pouco cansativo ter que traduzir o mundo o tempo todo. Como se não bastasse a exaustiva tarefa dele, a esposa, vez ou outra, argumentava. A culpa era dela quando as situações saíam do controle, ela deveria saber que o nível de tolerância do marido era baixo. Ela sempre soube, aliás. Ela sempre permitiu o comando dele. Para que provocar agora? Ele não era má pessoa, que ninguém entenda mal. Quando batia nela ou a chutava, era porque circunstâncias muito específicas o levavam a isso. Sempre é preciso considerar o contexto dos eventos para não fazer injustiças ou lançar-se a julgamentos precipitados.

Um dia, superados todos os limites da paciência, ele se viu obrigado a jogar a esposa pela janela. Ela dera para discutir agora; perdera a noção das coisas. Os gritos dela e os pedidos de socorro não foram ouvidos pela vizinhança. Todos sabem que entre briga de marido e mulher não se mete a colher. Acomodado este dilema moral, todos voltam a dormir tranquilos, com as suas consciências apaziguadas, o sono dos justos. Agora não há mais concessões a fazer, roxos a esconder, gritos a abafar. O corpo inerte na calçada é o derradeiro ajuste da esposa ao casamento.


 

Crônica publicada originalmente no jornal Visão do Vale em 10 de agosto, 2018 às 14:37

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