Mariléia Sell
Vamos a(r)mar nossas crianças
Para avaliar o progresso de uma sociedade, basta observar como ela trata as suas crianças, especialmente no que se refere às políticas para essa fase peculiar de desenvolvimento humano. Em tempo de eleições, é crucial ver as propostas e as representações de infância dos candidatos. E nisso, vamos mal, muito mal. Não bastasse reproduzir uma arma com as mãos de uma criança que segurava no colo, o candidato Jair Bolsonaro declarou também que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) deveria ser rasgado e jogado na latrina. Não, não é fake News. Nem tampouco exagero semântico; “rasgado” e “latrina” foram os termos usados. Está tudo registrado em áudio e vídeo. Está tudo ostensivamente e vergonhosamente público. Público e estranhamente aplaudido pelos seus eleitores e eleitoras. Ele falou também que é favorável a armar as crianças a partir dos cinco anos. Com munição de verdade. De novo, não é fake News.

A noção de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos é nova no Brasil e foi inaugurada na Constituição Federal de 1988, que através do artigo 227 lançou as bases para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente. A Constituição de 1988, também conhecida como a Constituição Cidadã, passou a garantir às crianças e aos adolescentes os direitos fundamentais de sobrevivência, desenvolvimento pessoal, social, integridade física, psicológica e moral. Além disso, ela também previu formas especiais de proteção, através de dispositivos legais diferenciados, contra negligência, maus tratos, violência, exploração, crueldade e opressão.
Entretanto, até se chegar a essa legislação cidadã, as crianças brasileiras passaram por uma longa trajetória social e jurídica de quase invisibilidade e abandono estatal. No tempo da colonização, as crianças que chegavam em solo brasileiro nas embarcações portuguesas serviam de mão-de-obra escrava ou serviam de “mulher” para a tripulação masculina. Elas não tinham quase nenhum valor aos olhos dos europeus, pois, além de não produzirem como os adultos, precisavam ser alimentadas, vestidas e, em alguma medida, cuidadas. A criança indígena, a primeira efetivamente brasileira, foi escravizada e depois catequizada, ao passo que a criança africana já nascia sob o estatuto da escravatura.
Philippe Ariès, historiador e medievalista francês da família e da infância, aponta que a infância só teria “surgido”, ou obtido o reconhecimento social a partir do século XVII, pois até ali as crianças eram vistas como “mini adultos”, usando a mesma vestimenta, realizando as mesmas atividades e não sendo apartadas do mundo adulto. Quando a criança começou a ser destacada do mundo adulto, o que poderia ser um marco positivo para a compreensão da infância como uma idade peculiar, que exige cuidados específicos, ela começou, na verdade, a ser associada ao déficit. Em uma visão adultocêntrica, em que o adulto é a medida a partir da qual se mede os outros grupos etários, a criança passou a ser considerada como padrão desviante, ou seja, passou a ser vista como aquela que não tem, não sabe, não pode, totalmente dependente, assumindo a condição de objeto das vontades dos outros, o que também se refletiu nas leis que surgiram para normatizar a infância.
A primeira Carta Constitucional brasileira, de 1824, ainda no período imperial, não fez nenhuma menção aos menores. O Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, foi o primeiro documento legal a referir-se à criança, tratando-a na classe dos menores criminosos. Esse Código impunha ao menor com idade superior a 14 anos uma responsabilidade criminal e os menores de 14 anos eram julgados e punidos segundo o critério do discernimento, ou seja, o juiz avaliava o grau de consciência de uma prática criminosa e decidia o destino da criança. Dessa forma, a porta de entrada das crianças no Direito brasileiro foi na área penal, como agentes sem liberdade e sem direitos, mas com responsabilidade plena pelos seus atos criminosos.
A segunda aparição da criança em normativas legais foi em 1862 e dizia respeito à proibição de separar o filho dos pais e das mães nos trâmites de vendas de escravos. Com o fim da escravidão, o processo desestruturado de urbanização, a chegada de imigrantes europeus, as doenças, a falta de saneamento básico e a ausência de sistemas de saúde pública, aumentou o número de crianças necessitadas, dando início ao conhecido e ainda atual quadro brasileiro de crianças em situação de rua. Nesse contexto, surgiu a necessidade da criação de instituições de acolhimento, como as casas de correção, institutos disciplinares, orfanatos e abrigos. É importante frisar que o menor e sua “situação irregular” é que representavam o problema e não a desestruturação social em si. As políticas adotadas visavam proteger a sociedade dos perigos que crianças pobres e moralmente abandonadas poderiam oferecer e não amparar essa infância maltratada.
As diversas leis e códigos que vão surgindo a partir de então continuam não contemplando todas as infâncias e adolescências: são específicos para a população pobre (carente, mendiga) ou em situação irregular (abandonada, vítima, infratora, “vadia”, “delinquente”, “criminosa”, “contraventora”). As crianças e os adolescentes brasileiros tiveram ingresso no Direito através dos atos de delinquência, como “menores criminosos” e os instrumentos legais previam com maior ênfase o castigo. Essa panorâmica só muda efetivamente com o advento de um aparato legal que contempla uma visão radicalmente inovadora sobre a infância.
A Constituição Federal de 1988 pode ser considerada a maior de todas as conquistas para a criança e o adolescente, tendo introduzido a concepção da Doutrina de Proteção Integral (artigo 277), que vê a criança (todas e não somente as que se encontram em situação irregular) como sujeito credor de direitos, que devem ser assegurados com absoluta prioridade. Enquanto os Códigos de Menores focalizavam sua atenção no menor, baseados na Doutrina da Situação Irregular, como problema unicamente do Estado, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Federal nº 8.069/1990, inaugurou a responsabilidade coletiva, participativa, complexa, articulada, em que a criança e o adolescente são credores de direitos, que devem ser assegurados pela família, pela comunidade, pela sociedade e pelo Poder Público, conforme previsto no Art. 4º. O Estatuto da Criança e do Adolescente, como lei complementar à Constituição de 1988, que surgiu para regular os dispositivos constitucionais que dizem respeito à infância e à adolescência, se constitui, de acordo com o Repertório IOB de Jurisprudência, “mais do que uma lei de primeiro mundo, mas a primeira lei do primeiro mundo”. Isso porque o Brasil se antecipou até mesmo à Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, para definir suas políticas em relação à infância e à adolescência e porque essas políticas são consideradas de vanguarda no contexto internacional.
O “menor” delinquente, criminoso, pervertido, estigmatizado e pobre é agora tratado pelas categorias jurídicas “criança e adolescente”. O Estatuto da Criança e do Adolescente substitui também o termo “Código” por “Estatuto”, uma vez que o primeiro termo tem uma conotação, no Brasil, de coibição, punição e proibição, enquanto o segundo termo estabelece relação mais estreita com a questão dos direitos. O menor que era situado juridicamente como objeto de interesse dos adultos, em uma visão adultocêntrica, passa a ser percebido, na nova legislação brasileira, como ser humano com direitos, desejos e vontades.
Como é possível perceber, a trajetória dos direitos das crianças brasileiras foi longa e nada gratuita. Logicamente, ter as garantias legais, em nosso país, não significa a efetivação desses mesmos direitos na vida como ela é. Mesmo assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente é reconhecido no mundo todo pelo seu vanguardismo. Para qualquer candidato a político, manter o ECA deve ser ponto pacífico. Qualquer candidato deveria comprometer-se a assegurar efetivamente os direitos das crianças, ampliando as redes de proteção e de cuidado, além de, é claro, comprometer-se massivamente com a educação. Qualquer movimento que vá na contramão disso significa o retrocesso, o retorno a uma visão atrasada, preconceituosa e medieval, para não dizer criminosa. Por falar em crime, se fossemos um país sério, um candidato como Jair Bolsonaro não teria a sua candidatura legalmente validada porque seus discursos ferem profundamente os direitos humanos: das mulheres, da comunidade LGBT, dos negros, dos índios, das crianças. Se fossemos um país sério, um candidato desses não teria eleitores e eleitoras. Qual é a sociedade que quer armar as suas crianças? Que tipo de sociedade faria isso? Que tipo de sociedade iria querer rasgar os direitos dos seus filhos e das suas filhas em idade peculiar de desenvolvimento? Uma sociedade que quer armar crianças e não amar crianças está muito doente.
Texto publicado originalmente em Visão do Vale, em 17/10/2018.