Maria de Lurdes, Luluzinha, como era chamada, era dessas crianças do sertão. Um sertão acostumado, assim como o seu povo, a esperar. Esperar pela chuva. Esperar pela comida. Esperar pelo médico. Esperar por milagres. Se havia duas palavras que definiam a semântica daquele mundo, elas seriam, sem dúvida, sede e espera. Luluzinha também tinha sede e também esperava. Queria muito uma boneca. O problema é que bonecas não chegavam naquele mundo que a graça de Deus não alcançava. Também não chegavam chinelos e nem mochilas. Mas ela podia muito bem andar descalça, seus pés aguentavam bravamente a terra estorricada. Podia também carregar seus cadernos em um saco de farinha. Tudo isso era completamente administrável para uma criança do sertão. O que ela não podia mais, não podia mesmo, por mais que se esforçasse, era viver sem uma boneca.
Uma boneca só aterrissaria na vida de Luluzinha por um milagre. E milagres, assim como todo o resto, eram mercadorias escassas no sertão. Deus andava sempre muito ocupado para atender criancinhas pobres; tantas coisas importantes para olhar mundo afora! Mas o desejo de Luluzinha era feito de outra matéria, tinha tanto ardor, mas tanto ardor, que furou as nuvens, entrou pela porta da frente do céu e tocou Deus, sentadinho em seu trono. E o milagre se fez. E ela veio. Veio por meio de um tio, um militar que morava na cidade e que calhava ser seu padrinho. E não era uma boneca qualquer, era uma boneca Estrela, dessas que o Sílvio Santos divulgava em seus programas, programas mais antigos que o próprio sertão. A boneca era loiríssima e tinha olhos azuis. Ostentava uma longa cabeleira, com fartas ondas de neve caindo até o bumbum. Usava um vestido colorido e calçava sapatos, coisa mais linda de se ver! Ela mesma, Luluzinha, nunca tivera sapatos, mas isso não importava, nada mais importava, agora tinha uma boneca e o mundo, se quisesse, tinha a permissão de acabar! A boneca vinha em uma caixa. Ainda bem, pensava a menina, aliviada; assim a terra vermelha não sujaria a sua pele tão despreparada para as agruras do nordeste. Sujar aquela criatura tão perfeita seria um pecado, uma violação imperdoável. O sertão tinha um enorme potencial de hostilidade para com bonecas tão brancas e tão frágeis! Seria seu dever cuidá-la, com a própria vida, se necessário fosse. E ela cuidava. Cuidava tanto que não a tirava da caixa. Jamais. Recusava-se terminantemente.
Em uma das mudanças da família, a caixa abriu-se, e a boneca perdeu um dos sapatos. Nada que comprometesse demais o conjunto da obra, consolou-se a dona. Prejuízo mesmo foi o que aconteceu com os cabelos da boneca. Longe da vigilância de Luluzinha, a vizinha, uma menina sem modos e sem compostura, e também sem bonecas, enfiara um pente nas madeixas louras. Nunca mais os fios da boneca teriam o mesmo balanço, o mesmo caimento, ficariam espigados e estáticos pela eternidade afora. Luluzinha ficou semanas tramando um castigo condizente com o tamanho do atrevimento da vizinha: nunca mais dirigir-lhe a palavra parecia-lhe brando demais. E redobrou a vigilância.
Muitos anos se passaram: relógios e calendários arrastavam, sem pressa, o tempo. O tempo era a própria letargia da espera. Luluzinha já não era mais criança, tinha, agora, filhos e uma vida ocupada. Sua boneca resistira estoicamente à inclemência do mundo, resguardada pela segurança da sua caixa. O que Luluzinha não poderia prever é que, a despeito de toda a proteção, a boneca contrairia um sério problema de pele. Para o seu horror, a pele da boneca começava a esfarelar. Uma dermatite severíssima, por certo. Olhando bem, ela estava também meio amarelada, como se lhe faltassem vitaminas; falta de sol talvez! A boneca estava envelhecendo, pensou, perturbada. Luluzinha não sabia precisar desde quando, mas, sinistramente, ela também adquirira um par de olhos ressentidos, olhos de pura mágoa. Se olhasse direito, veria que eram olhos de acusação. Olhos que procuravam a responsabilização por uma vida sem aventuras, uma vida cheia de promessas que jamais se realizariam, uma vida livre de riscos e de escoriações, uma vida cheia de devir. Uma vida inteira na caixa. E na vida não há remissão para ninguém, nem mesmo para quem vive no conforto de uma caixa. Mesmo para os encaixotados, a morte é certa. A morte, essa senhora tão democrática. Para todos ela vem, indiscriminadamente.
Luluzinha não aguentaria aqueles olhos perseguindo o seu juízo. Não aguentaria insinuações e acusações. Não suportaria isso de ninguém. Lidaria com a situação, como adulta que era. Jogou a boneca no lixo, com caixa e tudo.
Conto publicado originalmente no jornal Visão do Vale em 18 de abril, 2018 às 21:08
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